Em discussão há mais de 30 anos por especialistas, tributaristas e pela classe política, a reforma tributária aprovada no fim de 2023 pode trazer impactos redistributivos de renda consideráveis para o Rio Grande do Norte. Com a adoção do Imposto de Valor Agregado (IVA) e a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a expectativa é de menos desigualdade entre municípios e aumento da arrecadação de cidades mais pobres. Estudo elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o novo regime terá um efeito redistributivo positivo para 90% dos 167 municípios potiguares, ou seja, 150 cidades, gerando um ganho de R$ 1,093 bilhão/ano na receita líquida. Na ponta inversa, 17 municípios teriam perdas, que somariam R$ 211 milhões/ano.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45/2019) foi aprovada em dezembro de 2023 e será implementada gradualmente a partir de 2026, com efeitos em 2027, passando a valer integralmente a partir de 2033. A mudança gradual da cobrança na origem da produção de determinado item para a cobrança no local de consumo acontecerá em 50 anos, entre 2029 a 2078.
O estudo do Ipea, assinado pelos pesquisadores Sérgio Wulff Gobetti e Priscila Kaiser Monteiro, faz também um cálculo projetando um efeito redistributivo agregado, ou seja, considerando a soma das receitas de estados e municípios pré e pós-reforma, sem considerar período de transição. No pré-reforma, a receita potiguar seria de R$ 8,134 bilhões. Já no pós-reforma, saltaria para R$ 10,360 bilhões por ano, gerando, portanto, um saldo positivo de R$ 2,226 bilhões.
A nível Brasil, o estudo cita que há um deslocamento de receita das UFs de PIB per capita médio ou alto para as de menor nível de renda. O efeito redistributivo total é da ordem de 7%, e, considerando que cerca de R$ 54 bilhões dos R$ 801 bilhões de receita “trocam de mãos”, a reforma favoreceria UFs que concentram 70% da população brasileira.
Segundo o estudo, efeitos redistributivos mais consideráveis seriam justamente nas esferas municipais. Aproximadamente R$ 50 bilhões ou 21% das receitas municipais seriam redistribuídas, beneficiando 82% das cidades brasileiras, uma vez que esses valores se somam aos ganhos da própria UF.
Correção de distorções
Segundo a pesquisadora do Ipea, a economista Priscila Kaiser, a reforma tributária é importante não só para simplificar, “mas principalmente para corrigir distorções econômicas e federativas”.
“Concluímos que a desigualdade entre os municípios se reduz essencialmente pela redistribuição da arrecadação dos impostos de ISS e ICMS. A possibilidade dos municípios tributarem todo consumo dos seus cidadãos (e o princípio do destino, que garante que o imposto fique no local onde ocorreu consumo), diminui a concentração de receita – que atualmente está restrito a um número pequeno de cidades. Ou seja, os impostos que pagamos hoje, seja pelo pãozinho que consumimos na padaria, pela energia elétrica que consumimos e até pelos serviços streaming que utilizamos, que na maioria das vezes acabam sendo direcionados para outras localidades, serão direcionados para o local de fato em que vivemos”, comenta.
É o que aponta também o diretor institucional do Comitê Nacional de Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz), André Horta. Ele explica que o ponto principal da reforma é a tributação sobre o consumo e não necessariamente no local de produção.
“Um dos reflexos é a arrecadação no destino desses impostos, principalmente para estados e municípios de perfil consumidor. Isso é um ganho estrutural importante. Hoje você põe uma parte do ISS na origem, dá-se um benefício fiscal e todas colocam a sede ali, gerando emprego e renda só lá. Um exemplo é as empresas de cartões de crédito: todas têm a sede no mesmo lugar. Se um usuário de Natal atrasa o cartão de crédito, por exemplo, e aquilo gera uma multa, aquele usuário quer que aquele valor seja revertido para a cidade dele, para uma vacina, uma escola, etc”, aponta Horta.
FNP cria Comitê para subsidiar regulamentação
A Frente Nacional de Prefeitos (FNP) foi formalmente convidada pelo Ministério da Fazenda para participar, com representantes titulares e suplentes, em todos os grupos técnicos para subsidiar o Governo Federal na regulamentação da reforma tributária. Para assegurar um posicionamento coletivo das cidades mais populosas do País nessas instâncias, a FNP está articulando um Comitê de Assessoramento para que todos os municípios interessados possam participar desse processo.
O presidente da entidade pondera que, nesse momento, muitas dúvidas surgem a respeito do papel dos servidores locais na gestão desse novo imposto e das práticas de cobrança, fiscalização e auditoria. “Tudo isso ainda vai ser encaminhado na regulamentação da reforma tributária”, complementa.
Para Edvaldo Nogueira, prefeito de Aracaju (Sergipe), a expectativa é de que a reforma tributária alavanque o crescimento potencial do País. “Naturalmente, se isso se efetivar, a atividade econômica mais pujante vai beneficiar os municípios. Ou seja, mais renda, emprego e arrecadação e menos pressão pela prestação de serviços públicos. No entanto, é preciso considerar que o crescimento econômico depende de fatores diversos e que não estão diretamente relacionados à reforma”, afirma Nogueira.
Sob a hipótese de impacto positivo da reforma sobre a economia, diz o presidente da FNP, é esperada uma redução da desigualdade de receitas entre os municípios. Nogueira alerta, contudo, que “para que possamos tratar da redução de desigualdades entre governo locais é fundamental inserir nessa discussão uma reforma profunda das competências dos entes e do sistema de transferências intergovernamentais, o que não foi contemplado na reforma. Só assim se pode pensar em uma mínima equalização fiscal na federação”.
Teoricamente, ressalta, é a mudança do princípio da origem para o princípio do destino que garantirá a desconcentração. “Ou seja, a partir do momento em que os tributos passarem a incidir sobre o consumo, e não sobre a produção, haverá desconcentração da arrecadação, pois a atividade econômica (produção) é mais concentrada no território do que as pessoas (consumo)”, explica o presidente da entidade.
O presidente da Federação dos Municípios do Rio Grande do Norte (Femurn), Luciano Santos, aponta que a regulamentação da lei precisará ser discutida de forma ampla de modo que não haja mudanças no tocante aos menores municípios, que ele aponta como beneficiados com as mudanças no sistema tributário. O presidente da Femurn diz ainda que teme intervenção de grandes cidades na regulamentação da PEC.
“Acreditamos que os pequenos municípios irão de fato receber esse benefício caso não haja intervenção dos grandes municípios na regulamentação da PEC. As cidades com maior população irão sim se manifestar, criar meios para que saiam favorecidos, mas os prefeitos das pequenas cidades estão atentos mediante convocação da CNM. Acreditamos que os pequenos municípios terão sim um resultado positivo, essa é a nossa esperança”, exemplifica.
Reforma Tributária
A PEC cria dois IVAs:
CBS: Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência federal, vai unificar os três tributos federais (PIS, Cofins e IPI)
IBS: Imposto sobre Bens e Serviços, com gestão compartilhada entre estados e municípios, unificará o ICMS (estadual) e o ISS (municipal)
Transição
2026: início da cobrança da CBS e do IBS, com alíquota de teste de 0,9% para a CBS e 0,1% para o IBS
2027: extinção do PIS/Cofins e elevação da CBS para alíquota de referência (a ser definida pelo Ministério da Fazenda)
2027: redução a zero da alíquota de IPI, exceto para itens produzidos na Zona Franca de Manaus
2029 a 2032: extinção gradual do ICMS e do ISS na seguinte proporção
– 90% das alíquotas atuais em 2029
– 80% em 2030
– 70% em 2031
– 60% em 2032
2033: vigência integral do novo sistema e extinção dos tributos e da legislação antigos;
2029 a 2078: mudança gradual em 50 anos da cobrança na origem (local de produção) para o destino (local de consumo)
O que
Esse conteúdo faz parte da série de reportagem “Reforma na Prática”, que a TRIBUNA DO NORTE começa a publicar neste domingo, mostrando as mudanças no regime tributário que impactarão estados e municípios, e a vida do cidadão brasileiro pelos próximos 50 anos.